Adictologia - Associação Portuguesa de Adictologia: Comunicados

Projeto - Hepatite C a Infeção Silenciosa

Eliminar a Hepatite C em Portugal em Populações mais Vulneráveis: é tempo de pensar nos consumidores de drogas

A hepatite C é uma infeção causada pelo vírus da hepatite C (HCV) que provoca a inflamação do fígado. Para algumas pessoas, a hepatite C é uma doença de curto prazo, mas em mais de metade das pessoas infetadas com o vírus da hepatite C, há uma evolução para uma infeção crónica de longo prazo. Na ausência de tratamento, a doença pode resultar em problemas de saúde graves, até mesmo fatais, como a cirrose e/ou o cancro do fígado.
O HCV transmite-se através do contato direto com sangue infetado, ou seja, transmite-se quando o sangue de uma pessoa infetada entra na corrente sanguínea de outra pessoa. A maioria das vezes, a infeção ocorre através do contato sanguíneo devido à injeção e/ou práticas de perfuração cutânea (tatuagens) sem condições de segurança, à falta ou má esterilização de equipamento médico, a transfusões de sangue e produtos derivados não sujeitos previamente a rastreio. É por isso que se recomenda a todas as pessoas com fatores de risco (pessoas com VIH positivo, recetores de transfusões de sangue realizadas há muitos anos, pessoas que já injetaram drogas e que partilharam material de injeção e pessoas que nasceram de uma mãe infetada pelo HCV) devem ser testados para o HCV. Calcula-se que aproximadamente 71 milhões de indivíduos estão infetados em todo o mundo, na Europa serão 14 milhões. Em Portugal poderão existir cerca de 150 000 pessoas infetadas com o vírus da hepatite C, muitos dos quais estão assintomáticos e desconhecendo que estão infetados.
Nas duas últimas décadas houve uma evolução significativa no conhecimento científico sobre a doença hepática relacionada com o vírus da hepatite C, o que tem permitido aumentar os níveis de atenção e de intervenção através da: vigilância, envolvimento da comunidade, de políticas de redução de riscos e de minimização de danos e da prestação de cuidados de saúde, intervenção centrada na pessoa, diagnóstico precoce e tratamento. A nível do tratamento houve avanços significativos nos últimos anos, o que tem permitido que o tratamento da hepatite C ocorra num curto período de tempo (8-12 semanas), seja bem tolerado (administração por via oral), com poucos efeitos secundários e com uma taxa de cura superior a 95%. Na verdade, a emergência dos antivirais de ação direta (DAA) veio revolucionar o tratamento da hepatite C ao ponto da OMS emitir a sua primeira estratégia global para o setor da hepatite viral, promovendo a eliminação do HCV por meio de uma redução de 80% na incidência de HCV e de 65% nas mortes associadas ao HCV até 2030, com o objetivo de atingir a meta da eliminação da hepatite C. Se bem que a prevalência da hepatite C seja baixa na população em geral, o mesmo não acontece nas populações mais vulneráveis onde encontramos uma taxa muito elevada de HCV positivo. A população consumidora de drogas encontra-se neste grupo mais vulnerável à infeção pelo vírus da hepatite C já que um dos mais importantes fatores de risco para a infeção por HCV é o consumo, no passado ou atual, de drogas por via injetável. Uma vez o vírus introduzido numa rede de consumidores que injetam drogas, ele pode circular rapidamente nesta população através da reutilização de equipamento de injeção contaminado nomeadamente agulhas, seringas, “caricas”, pratas e filtros.

Porque é que o problema é grave em Portugal?

Portugal teve nos anos 80 e 90 do século passado um grave problema com o consumo de heroína, substância com um elevado potencial de dependência e cujo o consumo se expandiu de forma epidémica. Os indicadores apontavam para 1% da população portuguesa com consumo problemático de heroína, atingindo todas as idades, todos os grupos sociais e minorias étnicas. Com um elevado número de consumidores de heroína e com uma grande maioria a utilizar a via de administração injetável e a partilhar material de injeção, as consequências associadas a esses consumos revelaram-se a vários níveis: na saúde pública, aumento de infeção VIH/SIDA, hepatite B e C, tuberculose, número elevado de overdoses, na família, disfuncionalidade e violência familiar, na comunidade, aumento da pobreza e da criminalidade, graves problemas de insegurança pública, aumento do desemprego e da dependência de apoios sociais.
A complexidade da situação exigia que fossem tomadas medidas que visassem reverter este ciclo, ocorrendo então uma viragem nas políticas públicas no sentido de integrar a abordagem das toxicodependências no âmbito da saúde. A importância da dimensão da saúde nesta área de intervenção foi novamente reforçada com a lei da descriminalização de drogas aprovada pelo governo no ano 2000. Os resultados expressam bem que as politicas avançadas se relevaram positivas, foi criada uma rede pública de serviços com intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências que abrange todo o país, entre 1998-2011 há um aumento em 60% do número de utentes em tratamento na rede pública de serviços, há uma diminuição de mortes por overdose, 3 por um milhão de pessoas, mais baixo que a média na União Europeia que é de mais de 17 por um milhão de pessoas (2018).
Já no que respeita ao número de infetados com o VIH na população com consumo de drogas por via endovenosa, verificamos que em Portugal, entre 2001-2018, se regista uma diminuição em mais de 90% de novos casos positivos. Os serviços que intervêm nas adições e os serviços hospitalares que tratam os doentes com VIH positivo, souberam dar resposta através de intervenções de prevenção, de deteção, de referenciação e de tratamento. Com uma abordagem inicial de aconselhamento os utentes são sensibilizados para conhecerem o seu estado serológico através da realização do teste rápido. Perante um resultado positivo o utente é de imediato referenciado para o serviço hospitalar para iniciar o tratamento, estando assegurada a colaboração e a comunicação entre os profissionais dos serviços intervenientes no processo de forma a garantir os níveis assistenciais necessários.

E em relação ao tratamento da hepatite C nesta população?

Os consumidores de drogas por via injetada não estão apenas em maior risco de infeção e reinfeção pelo HCV, mas também em maior risco de progressão da doença, mortalidade e transmissão progressiva do HCV, devido a fatores socioculturais e ambientais que favorecem o consumo, incluindo marginalização, pobreza, violência e dificuldades no acesso ao tratamento. Neste sentido o acesso ao tratamento é importante para resolvermos um problema de saúde pública e melhorarmos a qualidade de vida desta população.
Apesar de, desde o ano 2000, haver tratamentos para a hepatite C nunca houve grande adesão a este tratamento, o longo período de tratamento que era exigido e os efeitos secundários dos fármacos administrados eram fatores que levavam ao abandono deste tipo de tratamento.
Agora que estão disponíveis novos tratamentos que permitem uma taxa de cura superior a 95%, é importante que todo o esforço seja feito para que os consumidores de drogas com HCV positivo tenham acesso a estes tratamentos. O número de utentes assim o exige como comprovam os relatórios anuais do SICAD. Em 2001 havia 32 064 utentes em tratamento nos serviços públicos e em 2018 estavam 25 582, a este último número temos agora de juntar mais 13 422 utentes em tratamento nas Unidades de Alcoologia que passaram a integrar os serviços públicos que intervêm na área das adições. Sabemos que a adição é uma doença crónica, que evolui com recaídas, e cuja etiologia resulta de interações complexas entre variáveis genéticas, neurobiológicas, psíquicas, psicológicas e ambientais. Neste sentido, muitos dos atuais utentes que estão em tratamento têm um percurso de mais de vinte anos nos serviços, sendo que mais de 10 000 utentes estão integrados nos programas de manutenção com metadona e por isso vão continuar o tratamento. Tendo em consideração que mais de 50% dos utentes em tratamento estão positivos para o HCV, é urgente que estes utentes tenham acesso ao tratamento para a hepatite C. Muitos deles são positivos há já muitos anos, mais de dez anos, e as consequências de não estarem tratados podem começar a surgir a todo o momento. Tal como já aconteceu no tratamento para o VIH, o caminho para a eliminação do HCV exige uma intervenção integrada entre os vários serviços intervenientes nos tratamentos das várias patologias que o utente consumidor de drogas apresenta, procurando assim diminuir as consequências negativas que estão associadas a estas doenças, na saúde e na sociedade.
Se quisermos alcançar a meta da OMS de eliminar a hepatite até 2030, precisamos garantir que o acesso a estes tratamentos não seja dificultado aos consumidores de drogas pelo estigma e marginalização que está associado a esta população. O estigma quando internalizado produz um isolamento doloroso que encoraja o consumo de drogas, exacerbando diretamente o problema da adição e as patologias associadas. Por isso, e no sentido de reverter esta tendência, temos de aumentar o acesso aos cuidados de saúde para que estes utentes possam receber os tratamentos que necessitam. Havendo mais pessoas em tratamento, menor é o estigma e se o estigma é reduzido, então mais pessoas recorrerão aos tratamentos da sua adição e da hepatite C.
Se num primeiro momento estamos a direcionar esta intervenção para a população consumidora de drogas por via injetável, não devemos esquecer que o atual padrão de consumo com a crescente tendência para o consumo de múltiplas substâncias, de uma só vez ou em diferentes momentos, apresenta também riscos aumentados para a hepatite C. Estamos, é um facto, com um novo padrão de consumo e um outro perfil de consumidores, mas isso em nada altera a necessidade da intervenção na prevenção, na deteção precoce, na referenciação e no tratamento para a hepatite C que continua a ser um problema junto desta população consumidora de substâncias psicoativas.

Rocha Almeida
Presidente da Associação Portuguesa de Adictologia



História Interminável…

Tudo começou nos fins do ano da graça de 2011. Mas guardemos, por agora, os antecedentes que já só fazem falta aos novos investigadores da antropologia de públicos serviços ou será de serviços públicos? Para o caso é indiferente. A partir desse mesmo ano, encontraram-se os intérpretes de reconhecida dedicação e mestria em artes dedicadas ás mentes sonegadas por coisas que entontecem, numa sorte de navegação de ventos cruzados que os levaria a circunvagar em cinco distintas regiões deste país, complicando-se o acontecido entre indefinições do rumo central e as ascendências das tormentas locais. De um lado e de outro se constituiu esta viagem errante onde o movimento não vai nem para um lado nem para o outro não se conhecendo mesmo que azimute terá sido traçado, sentindo-se os intérpretes a rodar sobre si mesmos, entenda-se à deriva.
Postos á prova, debateram e elaboraram por escritos e falas tantas, ideias e configurações de estruturas para o todo pátrio, que pudessem assegurar o que é de justiça na saúde de gente que sofre com o cativeiro dos paraísos artificiais. Os esforçados intérpretes, desta aventura indefinida, efectuaram visitas ás portas de gente importante, acidentalmente sinceras, em que a imprevisibilidade se define bem como uma realidade obscura de objectivos, como se tratasse de ultrapassar um nevoeiro impenetrável.
Num continuado enigma em cada virar de gabinete, suportaram uma sensação parecida com um pensamento indecifrável, e, no entanto, estes intranquilos intérpretes, mantiveram uma surpreendente perseverança tanto nas artes de cuidar das gentes que sofrem de doenças que dificilmente os abandonam, como também na decência de quem cuida verdadeiramente da vida dos outros.
Se ao menos os senhores de gabinetes dissessem, hipoteticamente claro, “venham por aqui” …
Passaram dez verões e dez invernos e ainda hoje, a braços com esta indecifrável odisseia, aqueles interpretes, que pertencem a um género de pessoas em que a mágoa de continuar persiste, e de entre as quais, muitas, desalentadas e despeitadas umas, outras jubiladas, foram ficando pelo caminho, e, no entanto, conservam ainda hoje um terrível sentimento de que será muito em breve. Um sentimento muito pior que o da sorte, mas para o qual a oportunidade vai perdendo o seu tempo, ainda assim não aceitam acabar na cegueira. Sinal que a viagem não chegou ao fim e afinal interrogam-se, porque a tinham iniciado?! Porque tarda tanto a chegar o céu-aberto!? Onde conduzem agora as forças sujeitadas a uma corrosão ao longo de quase uma década?
São assim as histórias intermináveis. Assim como?...
Nota do autor: Qualquer semelhança com a história dos serviços para as adições neste país é pura coincidência porque esses têm bem definido o rumo inscrito na alínea f) do artigo 64 da Constituição da Republica Portuguesa “Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência”.

João Curto
Psiquiatra

ABUSO DE SUBSTÂNCIAS: CUSTOS DE MAIS DE $13 MIL MILHÕES NOS HOSPITAIS DOS EUA

Num estudo publicado em março de 2021 na JAMA Network Open, Assessment of Annual Cost of Substance Use Disorder in US Hospitals, os autores procuraram avaliar o custo anual direto atribuído a doentes que recorreram aos hospitais dos EUA em 2017, serviço de urgência e internamento, com o diagnóstico de perturbação por uso de substâncias. Começam por salientar que nos EUA nas últimas duas décadas, tem havido um aumento na procura de cuidados de saúde por parte da população com problemas com consumo de substâncias uma vez que se verifica que, entre 2005 e 2014 os internamentos com o diagnóstico de perturbação por uso de substâncias aumentaram 12% e que as idas ao serviço de urgência, pelo mesmo motivo, aumentaram 44% entre 2006 e 2014. Também a taxa de mortalidade por overdose de drogas nos EUA triplicou nas duas últimas décadas, atingindo em 2019 mais de 70 000 mortes,
De acordo com o estudo, nos hospitais dos EUA no ano de 2017, o diagnóstico de perturbação por uso de drogas, principal ou secundário, foi responsável por um total de 124 573 175 intervenções nos serviços de urgência e 33 648 910 atendimentos a doentes internados. Com base nestes dados, o custo anual para a saúde com doentes com problemas com consumos de substâncias foi calculado em 13,2 biliões de dólares.
O estudo mostra ainda os custos por substância, sendo os custos relacionados com o consumo de álcool os mais elevados, $7,6 mil milhões, os restantes $5,6 mil milhões são atribuíveis ao consumo de drogas ilícitas. De salientar que o consumo de tabaco não foi incluído neste estudo.
Entre as drogas ilícitas, os problemas com o consumo de opiáceos foi o que apresentou um maior custo $2,2 mil milhões, logo seguido do consumo de estimulantes (cocaína e anfetaminas) $1,4 mil milhões e da cannabis $740 milhões.
Os autores referem ainda que o custo total de 13,2 biliões de dólares é bastante elevado já que este valor representa um terço do total anual de gastos na saúde nos hospitais dos EUA. Concluem que “os resultados apresentados sugerem que o custo em ações de prevenção e intervenções eficazes a nível do tratamento pode ser substancialmente compensado por uma redução dos elevados custos hospitalares com doentes consumidores de substâncias”.
Este estudo revela apenas os custos para a saúde do consumo problemático de substâncias, mas se a esse valor associarmos os chamados custos sociais, perda de produtividade, desemprego, custos com a justiça e apoios sociais, etc., o valor total aumentará significativamente, (no Canada está calculado em mais de 46 biliões de dólares anuais).
No nosso país temos vindo alertar que a menor visibilidade social dos comportamentos aditivos não significa que os problemas tenham desaparecido. Na verdade, existe todo um conjunto de novos desafios, policonsumo de substâncias, dependências sem substâncias (jogo, ecrãs), novas substâncias psicoativas, que se colocam aos profissionais e aos serviços que intervêm na área dos comportamentos aditivos e dependências. E é neste sentido que concordamos e reforçamos as conclusões deste estudo ao salientar a necessidade de intervenção especializada nas adições, com serviços que apoiem os cidadãos e as comunidades através de princípios de proximidade, acessibilidade, credibilidade e rigor científico.

Competência em Adictologia Clínica

É com grande satisfação que a Associação Portuguesa de Adictologia anuncia que a Ordem dos Médicos aprovou a Competência em Adictologia Clínica.

Estivemos desde o início na criação desta competência. A 3 de Março de 2015 a Direção da Associação Portuguesa de Adictologia (APA) endereçou um documento ao então Bastonário da Ordem dos Médicos (OM) Prof. Doutor José Manuel Silva, onde era realçada a necessidade de se desenvolver e melhorar a capacidade de intervenção dos clínicos na sua vida profissional em matéria de adições, propondo assim a criação da Competência em Adictologia Clínica.

A proposta foi aceite tendo de imediato sido nomeado um grupo de trabalho na OM para estudar a criação da competência, que foi presidido pelo Profº Doutor Marques Teixeira e integrou, para além de médicos nomeados pela OM e pelo Colégio de Psiquiatria, dois associados em representação da APA.

Após a aprovação da Competência em Adictologia no final do ano passado, a Ordem dos Médicos, nomeou a Comissão Instaladora desta competência, que tem como primeira função a definição de critérios de avaliação curricular dos candidatos que venham a solicitar a admissão a esta competência. Esta Comissão Instaladora é presidida pelo Profº Doutor Marques Teixeira e continua a integrar os mesmos dois associados da APA que estão neste processo desde o seu início, o Dr. João Curto e o Dr. Rodrigo Coutinho.

A criação da Competência em Adictologia representa um importante passo para podermos dotar os médicos de formação adequada e credibilizada sobre prevenção, diagnóstico e tratamento, para o exercício clínico em adições. É também uma forma de integrar estes conhecimentos numa dimensão multidisciplinar, tão necessária nesta área de intervenção, e que tem sido um dos princípios basilares para os bons resultados da política portuguesa no âmbito das adições.

A Direção