MODELO PORTUGUÊS DE RESPOSTA AOS COMPORTAMENTOS ADITIVOS E DEPENDÊNCIAS A CAMINHO DO COLAPSO
O funcionamento das organizações públicas e privadas que atuam no âmbito dos comportamentos aditivos e dependências (CAD) encontra-se fortemente condicionado. O “prometido” organismo único para definir, implementar e gerir uma estratégia nacional para a organização dos serviços públicos e privados que atuam nesta área tem sofrido sucessivos atrasos, com consequências negativas evidentes ao nível da (des)articulação dos vários serviços, das diferenças existentes em função da localização geográfica ao nível da referenciação e encaminhamento para a prestação de cuidados e do desinvestimento constante que se tem verificado quer na rede pública, quer na rede privada (seja na prevenção, no tratamento, na reinserção ou na redução de danos).
Relativamente ao desinvestimento é notória a diminuição de profissionais do serviço público a trabalhar na área dos CAD desde 2012, que em alguns locais chegou atingir uma redução de mais de 25%, com consequências gravíssimas na capacidade de resposta destes serviços que, quando se espera que seja aumentada, se assiste a uma diminuição da mesma. Com esta diminuição assiste-se ao aumento das listas de espera, no impedimento das pessoas acederem a estes serviços para poderem ser referenciadas e posteriormente encaminhadas, de acordo com as suas necessidades, para as respetivas redes de tratamento, de reinserção social ou de programas de redução de danos. Acresce que a falta de uma normal e qualificada atividade dos serviços públicos para as adições compromete a complementaridade com as organizações privadas que se têm constituído parceiros essenciais para uma política nacional para as adições.
Também no setor privado se verifica um desinvestimento alarmante nas várias áreas de atuação, gerando problemas de precariedade e incerteza nos profissionais, nomeadamente nas áreas da prevenção e redução de riscos, com impacto nos serviços e no apoio prestados aos respetivos utentes, uma vez que se adia a decisão de assumir estes projetos como respostas de continuidade à semelhança de outras respostas existentes. Ainda na área do desinvestimento, desta vez em relação à rede privada de tratamento, nomeadamente as Comunidades Terapêuticas (CT), verifica-se um atrazo de 12 anos na atualização das convenções que servem para estipular o custo do tratamento e consequente financiamento para que as pessoas com problemas ao nível das dependências possam integrar estas estruturas. Apesar de estar previsto uma atualização anual destas convenções, desde 2008 que esta tal não acontece. Tendo em conta o aumento das exigências a que estas organizações estão sujeitas, com impacto direto nos custos com pessoal, com equipamentos e com toda a estrutura de apoio aos residentes, facilmente se percebe que estas organizações comecem a sentir dificuldades em manter a capacidade de resposta, estando mesmo algumas em risco de fechar.
Com estes argumentos tornam-se evidentes as grandes lacunas existentes nas redes públicas e privadas de apoio às pessoas com CAD, que põem em risco o “famoso” modelo português reconhecido mundialmente, mas que agora se encontra desmembrado e subfinanciado. São evidencias destes argumentos a ausência de um organismo único, agregador e gerador de diálogo entre os vários interlocutores que atuam nesta área, com o propósito de, em conjunto, criarem respostas adequadas e ajustadas às reais necessidades das pessoas que necessitam destes serviços, quer pela ausência de um modelo de financiamento adequado às exigências a que estas organizações estão sujeitas para prestarem serviços de elevada qualidade.
Toda esta situação foi/é agravada pela pandemia que atravessamos. As Unidades de tratamento e as Unidades de internamento públicas para as adições encontram-se limitadas pela situação pandémica e pelas medidas de contenção e segurança para utentes e profissionais, pela diminuição da capacidade de resposta que resulta da diminuição de recursos humanos e pelas limitações estruturais dos edifícios onde estão instaladas. É por via de um esforço enorme e de uma dedicação à causa dos profissionais em atividade que tem sido possível manter um funcionamento, embora reduzido, os serviços que reabriram ao público a partir do princípio de junho, tendo algumas unidades de internamento reaberto apenas no dia 13 de outubro, com limitação no número de camas a 50%. Claro que estas limitações nos serviços públicos afetam diretamente a rede privada nas várias áreas de atuação, tal como referido anteriormente.
Desde o início da pandemia que as organizações privadas têm desenvolvidos enormes esforços para manter as suas respostas em funcionamento, apesar do forte aumento das despesas, acentuada diminuição da receita e, muitas vezes, sem qualquer tipo de apoio extra por parte do estado. Apesar das dificuldades sentidas por estas organizações, praticamente todas se mantiveram a funcionar a 100%, procurando dar continuidade com a maior qualidade e dignidade possível ao apoio prestado aos seus utentes, recorrendo ao sacrifício das respetivas equipas e a uma gestão económica quase insustentável. Acresce referir que, também ao nível das orientações e procedimentos emanados pela DGS para lidar com a pandemia, as organizações privadas acabam por não ver refletidas as suas especificidades e as necessidades dos seus utentes, chegando estas orientações por vezes a serem encaradas como irrealistas.
Pelo exposto, consideramos urgente a tomada de decisão e implementação de ações, nomeadamente:
• Criação de um organismo único para definir, implementar e gerir uma estratégia nacional para a organização dos serviços públicos e privados que atuam nos CAD;
• Dotar a rede pública de estruturas e profissionais suficientes e capazes de responder aos desafios que são colocados atualmente;
• Envolver as organizações públicas e privadas no desenho e implementação deste organismo;
• Garantir a manutenção, sustentabilidade e dignificação dos serviços de RRMD pelas especificidades que apresentam na construção de respostas-programa de carácter contínuo e sistemático (quebra com o modelo de “projeto”);
• Atualizar o preço das convenções contratualizadas com o SICAD para as CT, tendo como ponto de referência o custo atual efetivo do tratamento residencial;
• Reconhecer a especificidade das CT enquanto modelo de tratamento com metodologias e atividades próprias de uma abordagem bio-psico-social, diferenciando-as de outras áreas da saúde como clínicas, hospitais ou centros de cuidados continuados;
• Disponibilizar um financiamento extra de emergência para responder aos problemas de (in)sustentabilidade financeira que as organizações privadas enfrentam, em resultado do encerramento parcial dos serviços públicos e do aumento das exigências nas admissões provocadas pela atual pandemia;
• Elaboração de um conjunto de procedimentos e orientações para lidar com a pandemia, que tenham em conta as especificidades e necessidades das pessoas que recorrem aos serviços destas organizações.
Assim os Signatários deste documento em representação da Sociedade Civil vêm pedir uma resolução urgente dos problemas apresentados, mantendo total disponibilidade para, em conjunto, encontrar soluções adequadas e ajustadas a cada situação identificada.
Lisboa, 23 de novembro de 2020.