As adições na era dos especialistas
As adições na era dos especialistas

“A missão da investigação científica é procurar conhecimentos fundamentais sobre a natureza e o comportamento dos seres vivos e aplicar esse conhecimento na melhoria dos cuidados de saúde, aumentar a esperança de vida e reduzir as doenças e as incapacidades”, (Volkow, N, 2020). A ciência, e em particular as neurociências com as actuais tecnologias das neuroimagens, tem proporcionado, nas últimas décadas, um conhecimento verdadeiramente aprofundado dos mecanismos neuronais subjacentes ao desenvolvimento das patologias aditivas. Para entender a complexidade destas doenças, foi necessário recorrer a várias disciplinas da biomedicina, incluindo neurociência, genética / epigenética, ciências comportamentais e sociais, pesquisa de desenvolvimento e ciências da comunicação. Para além disso, os avanços tecnológicos nos últimos anos em neuroimagem, optogenética, tecnologia de edição de genes, os estudos dos mecanismos epigenéticos e outras metodologias a par da investigação clinica, trazem-nos uma crescente compreensibilidade do funcionamento da resposta da máquina biológica do cérebro à utilização de substâncias psicoactivas e outros comportamentos aditivos. No entanto, e apesar das inúmeras descobertas científicas recentes, suficientemente sólidas, é estranho que ainda persistam pensamentos com barreiras ao conhecimento científico disponível. As adições são doenças crónicas, complexas, envolvendo mecanismos neurobiológicos, comportamentais e sociais subjacentes, independentemente das diversidades do ser humano. É incompreensível e inaceitável que perante três décadas de progressos no conhecimento da patologia aditiva, incidindo sobre estruturas e conexões funcionais entre regiões do cérebro, com perturbação dos circuitos cerebrais envolvidos no prazer e na recompensa, com saliência para o sistema dopaminérgico mesolímbico, dito sistema do prazer, na tomada de decisão, na aprendizagem e autocontrolo e outras áreas que não se encontram sob o controlo da consciência, ainda persista uma percepção fortemente influenciada por uma ideia de falha na própria acção interventiva com estes doentes, e isto apesar de todo este crescimento na compreensão dos comportamentos aditivos, desde a utilização ocasional até à utilização problemática e adição. Olhar o comportamento aditivo a substâncias de abuso como a decisão de consumir uma “droga”, motivada por uma estrutura padrão de crenças e desejos, é uma ideia que faz lembrar o entendimento de um passado histórico em que por exemplo os alcoólicos simplesmente se agarravam demais à bebida. É fazer perdurar uma emudecida descriminação das pessoas que sofrem de doença aditiva. Afigura-se que nos últimos anos esta perspetiva recebeu novo ímpeto nas mãos de uns quantos economistas e especialistas do comportamento. Mas é particularmente preocupante que aquela percepção seja também adoptada por parte de profissionais de saúde e, que por isso, não seja estranho que este pensamento conduza demasiadas vezes a teorizações restritivas, repletas de vaticinadoras soluções de pendor exclusivamente comunitário com apoio médico.
Estamos na era dos ilustres especialistas de quase tudo, espíritos de convicto saber fragmentado transformados em oráculos. Como é bom viver numa sociedade onde temos quem tudo pense por nós!? (Manuel Vázquez Montálban).
As intervenções com a comunidade, localmente destinadas, de acordo. Fazem parte de um todo com um contributo essencial nas prácticas de inclusão, de suporte social, nas medidas psicopedagógicas e de prevenção, na afirmação de cidadania e na redução do estigma e do preconceito em relação a pessoas com problemas de saúde ligados aos comportamentos aditivos. Integra necessariamente um conjunto articulado de intervenções que contribui para reabilitar e proporcionar a melhor qualidade de vida e o alívio da dor da rejeição social destas pessoas, mais agora com a crescente diversidade de grupos culturais que são acolhidos, fruto dos novos processos migratórios. Mas todas estas intervenções, profilácticas e recuperadoras em contexto comunitário e mesmo os factores do meio ambiente favorecedores do comportamento aditivo, não fazem desaparecer a realidade de factores internos de uma doença do cérebro, sobretudo com perturbação dos sistemas neuronais da vontade e do autocontrolo e o sofrimento que tal processo envolve, mesmo que se presuma a organização do meio social como factor de doença. Para além disso, e se atendermos ao histórico no nosso país sobre a criação de um modelo em rede onde se inclui a práctica de intervenção comunitária, então devemos reconhecer que essa sabedoria se concretizou na organização dos serviços públicos para as dependências a partir do final dos anos setenta com o desenvolvimento, em todo o país, de uma rede de serviços integrados no seio da comunidade. Hoje, estas estruturas, enfraquecidas nas suas componentes organizativas e de recursos humanos constituíam um sistema de funcionamento coerente e operativo e que, em cada área geodemográfica ainda se responsabilizam pela prestação dos cuidados. Desde o tratamento à reabilitação, com a implantação de programas de prevenção e minimização de danos e o estabelecimento de cooperação com as entidades públicas e privadas locais, sempre apresentaram verdadeira acessibilidade para todos os cidadãos e sem qualquer descriminação por motivos sócio económicos ou geográficos, garantindo, desta forma, a responsabilidade pelos cuidados aos doentes e a assistência aos familiares. Mas, deve salientar-se, que em simultâneo, desenvolveram-se técnicas psicoterapêuticas específicas, psicoterapias breves, os tratamentos de substituição opioide (Metadona e Buprenorfina) e, não obstante a lenta evolução das pesquisas de novos fármacos, mudanças na utilização de psicofármacos cada vez mais direccionados na sequência dos resultados de novas pesquisas sobre a perturbação neuro fisiológica de áreas do cérebro afectadas pela acção de substâncias psicoactivas e outros comportamentos aditivos. Por outras palavras o desenvolvimento duma dinâmica multidimensional e pluridisciplinar assente no modelo biopsicossocial, ou seja, a importância, a prática e as complexidades de uma abordagem integrada em adições, estruturada em Centros de Respostas Integradas (CRI), Comunidades Terapêuticas (CT) e Unidades de Internamento para Desabituação (UD e UA).
Não tem sido fácil a tradução atempada do conhecimento científico em novas práticas de prevenção e tratamentos na área das adições pese embora o seu contributo decisivo na compreensão dos mecanismos neuroquímicos e sociais subjacentes aos comportamentos aditivos. Persiste no presente um reconhecido hiato entre o conhecimento científico e a transposição oportuna para a implementação de novos modelos e instrumentos de prevenção e de tratamento, uma falha na disseminação e na adoção de intervenções mais eficazes que possam contribuir realmente para melhorar a vida dos indivíduos, famílias e comunidades. Na área das adições, como em todas as outras áreas da nossa existência, os conhecimentos proporcionados pela ciência são o presente e, se deixarmos, serão as bases para futuros tratamentos mais focados e eficazes. A ciência é impulsionadora e não pode ser olhada como embaraço.
A realidade actual da crise pandémica mostra-nos como é importante a presença do saber científico e a premência da sua aplicação na protecção e melhoramento da nossa vida, senão vejamos: como compreender, por exemplo, as consequências que possam resultar da infeccão por Covid 19 sobre consumidores de substâncias psicoactivas ao nível imunológico, particularmente em pessoas com comorbilidades infeciosas? Em que medida a infecção por COVID-19 pode alterar a exposição ao consumo de drogas, a certos medicamentos ou alterar completamente os padrões da utilização de substâncias psicoactivas? Como avaliar o impacto da coexistência entre as pessoas consumidoras de substâncias psicoativas e as restrições obrigatórias, pessoais, sociais e económicas, determinadas para conter a crise pandémica por Covid-19?
Quer isto dizer que nesta crise pandémica ressalta a necessidade de avaliações rápidas sobre o efeito das adversidades sentidas numa população instável e de difícil envolvimento na sua própria recuperação. O impacto das medidas de distanciamento social fortalece a tendência para uma crescente individualização do consumo, facilitando a passagem para outros padrões de utilização com associação de substâncias emergentes ou então aumentando a tendência para outros comportamentos aditivos como a utilização mais descontrolada dos écrans. Estes estados tornam-se condutas de maior risco para a vida destas pessoas e acrescentam complexidade na abordagem clínica. No caso particular dos consumidores de opioides é reconhecida uma maior vulnerabilidade aos efeitos adversos relacionados com COVID-19 pelo facto de que os seus sistemas respiratórios e cardiovasculares se encontrarem muitas vezes comprometidos pelo consumo, estando já sujeitos a uma lentificação do sistema respiratório. Estas pessoas encontram dificuldade em obter cuidados de saúde durante a crise que derivam tanto da condição de marginalização e da complexidade do próprio processo do comportamento aditivo como da dificuldade no acesso aos serviços públicos de saúde para as adições já de si debilitados e presentemente limitados na sua capacidade de resposta. Também as pessoas que sofrem de perturbações relacionadas com comportamentos aditivos têm direito a usufruir das melhores e mais actualizadas técnicas que o conhecimento científico pode proporcionar, exercidas por profissionais qualificados, cumprindo com o princípio humanista da ciência que deve estar ao serviço de todo o ser humano. Refiro-me ao desenvolvimento da investigação técnica e científica orientadas para os cidadãos e destinadas ao seu benefício, a melhorar a sua vida. Os direitos civis são uma força orientadora no combate à discriminação, frequentemente identificada, erradamente, como estigma das pessoas com problemas ligados aos comportamentos aditivos. Não é difícil, então, que perante esta população mais vulnerável, individual e socialmente, se possa reconhecer a importância em manter a vitalidade dos serviços públicos de saúde para as adições, operantes e com acessibilidade de forma contínua e permanente da mesma forma que existem serviços diferenciados para qualquer outra população com patologias de alto risco.
A existência de uma rede pública de cuidados diferenciados em adições não significa a exclusividade da intervenção, mas é sem dúvida uma garantia de equidade e de acessibilidade aos melhores e constantes cuidados de saúde. Sem dúvida que o alargamento da intervenção nos comportamentos aditivos através dos serviços hospitalares de saúde mental, dos cuidados de saúde primários e das organizações particulares de solidariedade social é estrategicamente relevante, dependendo apenas de uma articulação formalmente funcional e de uma formação qualificada dos profissionais. Diga-se a propósito que há muito que existe um documento no Ministério da Saúde, aprovado em conselho de ministros, e designado como rede de referenciação, cuja implementação teima em conhecer melhores dias. A existência de serviços diferenciados para as adições está em sintonia com o princípio de que as necessidades não são universais. Permite-nos uma abordagem mais minuciosa do doente e tratar cada vez mais a condição de cada indivíduo com maior precisão, porque só assim conseguiremos oferecer novas opções de tratamento com base na identificação de factores psicobiológicos característicos de uma certa pessoa, possibilitando desta forma a personalização da decisão terapêutica ou a abertura de nova opção terapêutica.
Mas como garantir as intervenções necessárias e inscritas numa consciência organizativa que se imponha à incerteza que caracteriza o momento presente dos serviços de saúde para as adições que se encontram em continuada perda de recursos nos últimos 8 anos? A título de exemplo refira-se que na região centro do país as unidades de intervenção local em adições, região onde as unidades de internamento só reabriram no dia 13 de outubro, perderam, desde 2012, 32% dos seus profissionais médicos de quadro, incluídos médicos de saúde familiar e psiquiatras. No conjunto dos seus profissionais, só em 2020 saíram dos serviços mais nove técnicos sem ter existido a devida renovação. E se esta situação vier para ficar, se se tornar uma opção, não será um forte retrocesso? As pessoas com comportamentos aditivos precisam dos serviços agora e não podem continuar à espera de decisões que tardam em chegar a pessoas com um confinamento sobre si próprios. Fazem parte da nossa paisagem mais familiar e no entanto não os queremos ver. Os decisores políticos não podem continuar a olhar para o chão no que respeita aos problemas relacionados com as adições. Hoje falta a decisão política de um ministério que teima em gastar as palavras. Ninguém pode ser deixado para trás...?

João Curto
Psiquiatra
Membro da direcção da Associação Portuguesa de Adictologia

https://www.publico.pt/2020/10/09/opiniao/opiniao/adicoes-especialistas-1934654


João Curto